Em “O filho da noiva”, filme no qual o ator Ricardo Darín faz o papel de dono de restaurante em Buenos Aires, há uma cena que diz muito sobre a relação histórica dos argentinos com o vinho. Quando está fazendo encomendas para repor o estoque e um funcionário pergunta se deve pedir também vinho branco, ele se irrita e diz que não. Em seguida, volta atrás com uma frase cheia de ironia:
– Pede duas caixas porque pode aparecer alguém de mau gosto…
É claro que a ideia de que o “grande vinho” sempre será tinto perdeu força de modo geral. Seria até ridículo ignorar alguns brancos da Borgonha, de Chablis, ou mesmo vinhos entre potentes e refrescantes, como aqueles feitos, por exemplo, a partir da uva portuguesa Alvarinho ou da Torrontés, nascida na própria Argentina. Acontece que, para o argentino médio, o “vinho-vinho” é o tinto.
Essa taça de tinto sempre foi uma companheira sem-cerimônia do dia a dia mais banal. Vinho sem nome nem sobrenome nem frescura. Até há pouco tempo, ainda havia vovós hermanos que tomavam seu vinho misturado com soda, espirrada diretamente de cifões de vidro. São aquelas garrafas bojudas com água gasosa que era despejada com pressão dentro de outras bebidas – e que hoje vemos à venda apenas como peças de decoração em feiras de antiguidades. Sacrilégio? E quem é que tem autoridade para meter o bedelho na cultura etílica dos outros?
A Argentina sempre produziu e consumiu muito vinho. Nesse ponto, a influência dos europeus, principalmente espanhóis e italianos, acompanhada de uma gastronomia baseada em proteína (carne!) e carboidratos (massa!), levou o país a ter um dos maiores consumos per capita do mundo. O que mudou de 10 ou 15 anos para cá foi a internacionalização desse produto, seguindo a lógica norte-americana de ressaltar a(s) uva(s) logo no rótulo (o que não é comum nos países do Velho Mundo).
Ontem e hoje – Estive em Buenos Aires pela primeira vez aos 13 anos, em 1988, por conta de novas relações familiares à época. Convivi com portenhos não só em restaurantes e lugares turísticos, como também em casas na cidade e nos arredores. Até hoje, depois de voltar inúmeras vezes, para mim ainda é estranho pedir um vinho na capital argentina como se pede hoje em dia em boa parte do mundo: pelo nome, pela vinícola ou pelo tipo de uva.
Vivi um pouco uma época em que, num restaurante qualquer da cidade que já foi chamada de “a Paris dos trópicos”, você pedia una copa de vino, uma taça de vinho, e acabou, estava ótimo – hábito que, aliás, é ainda muito comum na capital francesa, quando no máximo a gente especifica se quer mais para “leve” ou para “forte”. Desde aquela época, sempre me chamou a atenção a onipresença do vinho na mesa dos argentinos. Havia sempre taças – em muitas ocasiões, copos mesmo – em almoços e jantares caseiros ou na rua.
Lá, o vinho é como a milanesa com batata frita – que para eles equivale ao nosso bife com arroz e feijão –, como as empanadas ou a pizza, outras paixões nacionais. Ou seja, uma coisa básica, mas muito gostosa, um integrante do dia a dia. É um clássico como também o é – apesar da “muvuca” dos bairros moderninhos de hoje em dia – ir ao teatro na velha Av. Corrientes, a Broadway portenha, ou como a media luna, versão um tanto “desidratada” (mas bem saborosa) dos croissants franceses.
Na última vez em que estive lá, dois momentos me fizeram relembrar esses tempos idos. Um deles foi no mais que centenário Café Tortoni. Antes de começar o surrado show de tango apresentado para meia dúzia de gatos pingados, pedimos simplesmente dos copas de vino tinto. Pronto. Estava garantido o início de mais uma noite.
O outro foi quando, mesmo num restaurante cool de Palermo Soho, pedi um vinho considerado “simples” e a garçonete o serviu em copos. Sorri por dentro, ganhei a noite. Foi como se visse, materializada, a transição que eles ainda vivem entre antigas tradições e modernos hábitos.
Seja como for, o vinho, repaginado em grandes marcas e com a chancela de suas regiões produtoras mundialmente famosas, especialmente Mendoza, continua lá. Em restaurantes estrelados ou nos decadentes cafés de onde se pode ver a vida passar, ele segue sendo um velho companheiro de todos os dias.
0 Comentário