Há cem anos, quando Don Isabelino Marichal se estabeleceu em Etchevarría, localidade da região de Canelones (a 30 km de Montevidéu), nem a uva tannat tinha esse nome. Em 1916, a cepa francesa que se tornou um dos símbolos do Uruguai ainda era chamada de harriague. Foi a primeira que ele plantou. Hoje, é a quarta geração da família que dirige a vinícola que faz alguns dos vinhos mais interessantes do país: a Bodega Marichal.

Vinhedos da Marichal, que cultiva variedades como tannat, merlot, cabernet sauvignon, pinot noir e chardonnay
A vinícola nasceu em 1938 e até hoje é uma das que melhor expressam a tradição da vinicultura familiar tão característica do Uruguai. Continuando o pioneirismo de Don Isabelino, os bisnetos enólogos Juan e Alejandro, junto com os pais e avó Teresita – viúva de um dos filhos do patriarca –, elevaram a qualidade da produção a tal ponto eu que chegaram a “inventar” um vinho que nós jamais imaginamos que existisse.
Estamos falando de um branco de coloração alaranjada, fruto de uma rara – talvez até inédita – combinação de 65% da uva tinta pinot noir (vinificado como blanc de noir, ou seja, extrai-se o caldo “branco” da uva) com 35% da branca chardonnay. Tecnicamente, não é um rosé, é branco mesmo. E delicioso. Coisa de alquimista.
Casa da família – Mas não imaginávamos nada disso quando chegamos à discreta sede da vinícola, antiga casa da família. Fomos recebidos com grande simpatia pela sommelier Lorena Curbelo.
Primeiro, ela nos guiou por alguns vinhedos, onde são plantadas cepas como tannat, merlot, cabernet sauvignon, pinot noir, chardonnay e sauvignon blanc. Vimos em alguns pontos “uvas-bebês”, estágio em que ainda nem parecem uvas, de tão pequenas.
Em seguida, percorremos a parte histórica tanto da propriedade como da produção, desde os antigos tanques de concreto – as piletas (piscinas), como são chamados em espanhol. Ainda em funcionamento, são os antecessores dos reservatórios de aço inox de hoje em dia, onde se dá o processo de vinificação.
Nossa guia “particular” nos explicou que a localização geográfica é um ponto forte da vinícola. A Marichal está a apenas 25 km do mar e em uma região (como em boa parte do Uruguai) que costuma ter dias de sol quente e noites frescas, ótimas condições para o cultivo de uvas.
Toda a colheita é manual. Depois de conhecermos a vinícola, sua filosofia de produção artesanal e até alguns objetos antigos da família, era chegada a hora da degustação.

As antigas ‘piletas’ de concreto para utilizadas na fabricação do vinho: um pedaço da história da vinicultura uruguaia
Vinhos, empanadas e bate-papo – Numa espécie de quintal ao ar livre, sobre uma mesa rústica de madeira e com a vista para os vinhedos, degustamos cinco vinhos, acompanhados das típicas empanadas uruguaias.Começamos pelo Chardonnay Premium Varietal, um dos brancos básicos da vinícola. Além dele, essa linha – formada por vinhos jovens e sem passagem por barricas de madeira – tem ainda vinhos varietais (produzidos a partir de um só tipo de uva) de sauvignon blanc, merlot e tannat.
Passamos então à linha Reserve Collection, começando com o já citado Marichal Pinot Noir Blanc de Noir/Chardonnay (2012). Além da incrível cor alaranjada, ele mistura a sutileza própria da pinot com os tradicionais aromas e algum toque no gosto de frutas como abacaxi, típicos da uva chardonnay.
De fato, muito diferente de tudo o que conhecíamos e bom demais. Bebemos duas taças, o que é “muito” para uma degustação normal, e só não ficamos por ali porque queríamos conhecer os outros.
Depois, da mesma linha, provamos o Tannat (2013) e o Pinot Noir/Tannat (2011), esse resultado de uma combinação de 70% da uva pinot com 30% da tannat, a segunda dando potência à delicadeza típica da primeira – muito, muito bom. Para fechar, tivemos a chance de experimentar o vinho top deles: o Marichal Grand Reserve (2013), só de tannat. Um dos melhores da viagem, encorpado, gostoso, só bebendo para entender.
Foi a degustação feita com mais calma e a mais detalhada em quantidade e qualidade de explicações que tivemos até hoje. Lorena, mais uma mulher à frente de vinícola – faceta comum e um diferencial do Uruguai –, conduziu a prova como um bate-papo entre amigos, bebendo algumas taças conosco.
Ficamos quase uma hora e meia experimentando e repetindo cada vinho, e em generosas doses, antes de passar para o seguinte. Conversamos também sobre a política e a cultura do Uruguai, a evolução do vinho do país internacionalmente e o tanto que alguns dos vinhos uruguaios ainda podem ser reconhecidos entre os melhores do mundo.

Vinhedos e a pequena casa branca, antigo refeitório onde hoje ficam guardadas garrafas de safras especiais da vinícola
No saldo final, pelo equivalente na época a menos de R$ 400, fizemos duas brilhantes e completas degustações e compramos uma caixa com seis garrafas de diferentes vinhos. Deixamos aquele lugar incrível com a certeza de que as palavras da família que fecham o folder promocional da vinícola não são mera retórica: “Queremos fazer da Marichal uma referência clara em vinhos uruguaios de alta qualidade numa escala familiar”.
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